Contrato de trabalho em época de Covid-19: análise da legislação e do compromisso social do Estado a partir do princípio da fraternidade
Lenara Giron de Freitas
Doutoranda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, na linha de pesquisa Sociedade, Novos Direitos e Transnacionalização. Bolsista de pesquisa no Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PROEX/CAPES). Possui Mestrado em Direito (2015) pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais. Professora em cursos preparatórios para OAB e Concurso. Professora de cursos de Pós-Graduação em Direito e Processo do Trabalho. Integrante do projeto Teoria do Direito e Evolução Social, vinculado ao CNPq-Brasil, coordenado pelo Prof. Dr. Leonel Severo Rocha. Advogada trabalhista.
lenaragiron@gmail.com
Luciane Cardoso Barzotto
Juíza do Trabalho – Titular do TRT-4. Professora do curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS. Doutora em Direito pela UFPR. Membro da ASRDT (Academia Sul Riograndense de Direito do Trabalho).
lcardoso@trt4.jus.br
Rosana Kim Jobim
Advogada e professora. Mestre em Direito com foco em compliance trabalhista. Doutoranda em Direito com ênfase em LGPD nas relações de trabalho. Bolsista de pesquisa do Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de pessoal de nível superior (PROEX/CAPES). Integrante do grupo de pesquisa de Direito e fraternidade da UFRGS. Cofundadora do Instituto Compliance Trabalhista. Integrante do ComplianceWomenCommitte. Autora do livro Compliance e Trabalho.
rosanajobim@yahoo.com.br
Resumo: A pandemia causada pela Covid-19¹ alterou todas as relações sociais, invocando a necessidade de se repensar as estruturas do Direito do Trabalho. O objetivo deste artigo é analisar as relações traçadas pelo Direito do Trabalho e pela economia, permitindo uma visão sistêmica do que está sendo vivenciado, em especial no tocante à responsabilidade do Estado e dos empregadores. Para isso, parte-se de uma análise dos arts. 502, 503 e 486 da CLT, das previsões trazidas pelas MP 927/20 e MP 936/20, bem como de uma análise do princípio da solidariedade e fraternidade. Em conclusão, percebe-se que o Estado está tomando medidas em consonância com o princípio da fraternidade no sentido de amenizar a crise. Assim, responsabilizá-lo duplamente não poderia estar em consonância com os fundamentos da responsabilidade civil.
¹Ver Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020, do Congresso Nacional que declarou a situação de calamidade pública no Brasil. Disponível em:[legis.senado.leg.br/norma/31993957/publicacao/31994188].Acesso em: 31.03.2020.
Palavras-chave: Direito do Trabalho – Pandemia – Estado – Responsabilidade – Fraternidade.
Abstract: The pandemic caused by Covid-19 changed all social relations, invoking a need to rethink the structures of Labor Law. The purpose of this paper is to analyze the relationships drawn by labor law and the economy, allowing a systemic view of what we are experiencing, especially regarding the responsibility of the State and employers, based on an analysis of sections 502, 503 and 486 of the CLT (Consolidation of Brazilian Labour Laws), the forecasts brought by MP 927/20 and MP 936/20, as well as an analysis of the principle of solidarity and fraternity. In conclusion, what has been noticed is that the State is taking measures in line with the principle of fraternity in order to alleviate the crisis and hold it responsible according to section 486, which would not be in line with the fundamentals of civil liability.
Keywords: Labor Law – Pandemic – State – Responsibility – Fraternity.
Introdução
A pandemia causada pela Covid-19² alterou todas as relações sociais, invocando uma necessidade de se repensar as estruturas vigentes até então. As relações familiares tiveram que se adaptar ao homeschooling³; as relações trabalhistas ao homeoffice4 ; os governantes se viram obrigados a tomarem decisões importantes em horas, como o fechamento de escolas e universidades, do comércio e assim por diante. E o ponto principal é que o fechamento do comércio, muitas vezes, cessa a necessidade de força de trabalho, com implicações diretas no código capital/trabalho. Assim, fazendo um pequeno recorte, inclusive nas próprias discussões do Direito do Trabalho, o objetivo deste artigo é analisar as relações traçadas pelo direito do trabalho e pela economia, permitindo uma visão sistêmica do que estamos vivenciando, em especial no tocante à responsabilidade do Estado e dos empregadores, a partir de uma análise dos arts. 502, 503 e 486 da CLT, das previsões trazidas pela MP 927/20 e MP 936/20 (convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020), bem como de uma análise dos princípios da solidariedade e fraternidade.
Antes de analisar as consequências jurídicas, especificamente, faz-se necessário apontar alguns dados: a Alemanha, considerada o motor econômico da Europa, prevê que sua atividade econômica diminuirá 5% este ano; a China prevê crescimento de apenas 0,1%, quando o aumento apenas de janeiro foi de 5,9%; já os países do G20 sofrerão coletivamente uma retração de 0,5% do seu PIB neste ano e os Estados Unidos de -2%. O cenário no mercado de ações não é diferente, o índice Dow Jones registrou o pior trimestre desde 1987, caindo 23%. Na Europa, a queda foi de 30%.5 Esses dados demonstram uma completa transformação na economia e, por conseguinte, nas relações sociais.
Não há dúvidas de que a crise mundial, causada pela pandemia da Covid-19, afetou a indústria, os negócios, o modo de vida, ainda que temporariamente, fazendo com que dificuldades diretas e indiretas surgissem para as empresas. Ocorre que, inevitavelmente, a crise econômica interfere diretamente na relação trabalhista e, neste ponto, é necessário analisar a responsabilidade pelos contratos de trabalho diante da crise econômica causada pela pandemia. Para tanto, cabe analisar a rescisão de contrato ou redução de salário por motivo de força maior, que estão previstos nos arts. 501 a 503, desde a promulgação da CLT em 1943, mas há bastante tempo não discutidos com tanta relevância. Nesta mesma linha, analisa-se a responsabilidade do Estado pela extinção dos contratos, originada devido à paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por promulgação de decretos por autoridades governamentais. Tais decretos determinam o isolamento social e fechamento de comércios, impossibilitando a continuação das atividades pelas empresas, conforme previsto no art. 486 da CLT, que traz a denominada teoria FactumPrincipis, uma espécie do gênero força maior. Tudo isto juntamente com os princípios da fraternidade, solidariedade e algumas medidas provisórias de significativa importância, tais como a MP 927, de março de 2020, e a MP 936, de abril de 20206 , essa que foi convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020.
Nesse sentido, surge a necessidade jurídica deste artigo para repensar e observar a responsabilidade pelos contratos de trabalho diante de um momento de recessão econômica agravada pela instabilidade de um futuro imprevisível quanto ao estado de calamidade trazido pela Covid-19. Tal discussão não tem o intento de concluir pela aplicabilidade ou não do artigo 486 da CLT, mas dar uma visão a partir da previsão legal vigente, demonstrando argumentos a favor e contra a aplicabilidade da teoria da força maior, factumprincipis, corroborando com a discussão teórica e princípios correlatos como o da solidariedade e fraternidade.
²Idem.
³Proposta de ensino doméstica ou domiciliar legalizadas em países como Estados Unidos, Áustria, Bélgica, Canadá etc. e agora necessária em época de pandemia da Covid-19 face ao fechamento das escolas. Porém, em uma realidade em que todos os integrantes da família, muitas vezes com estruturas improvisadas, também estão precisando laborar em home office.
4Espécie de teletrabalho em que a atividade realizada pelo empregado ocorre em sua residência, atualmente ofertada em razão da Covid-19.
5 Dados extraídos do G1.Disponível em: [g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/01/coronavirus-a-catastrofe-economica-e-social-em-numeros.g html]. Acesso em:02.03.2020.
6Umas das medidas de enfrentamento à doença, em face da declaração de Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN), vide Portaria 188, de fevereiro de 2020.
1. A responsabilidade pelos contratos de trabalho diante da crise econômica causada pela pandemia
O que se tem discutido diante do quadro da crise sanitária é a quem caberá o ônus da responsabilidade dos contratos de trabalho diante da impossibilidade da continuidade das atividades da empresa, decorrente da promulgação de decretos por autoridades governamentais, determinando o isolamento e o fechamento de comércios. A dúvida é se a responsabilidade é do empregador, pelo risco do negócio diante do princípio da alteridade, ou do Estado, por impossibilitar a prestação laboral diante dos diversos atos normativos que restringem a atividade econômica em prol da saúde pública. Questiona-se também se a responsabilidade civil do Estado abarcaria somente as situações de extinção do contrato de trabalho ou todas as situações.
A cessação do contrato de emprego, geralmente, ocorre em face do alcance do termo final do contrato, quando firmado por prazo determinado; de despedidas com ou sem justa causa pelo empregador; de pedido de demissão; ou de comum acordo, entre outros 7 . Entretanto, tendo em vista o cenário anteriormente apresentado, passa-se a análise específica da responsabilidade pelas obrigações oriundas dos contratos de trabalho diante da impossibilidade de faturamento, com destaque às obrigações decorrentes do término do contrato de emprego em razão da extinção da empresa, seja por impossibilidade financeira (ausência de lucratividade), seja por determinação governamental (atividade legislativa). Cumpre destacar que, em dois momentos, a CLT ameniza as obrigações do empregador diante de casos de força maior, o que está previsto nos arts. 502 e seguintes (não envolvendo o Estado) e no art. 486 (o qual prescreve a responsabilidade do Estado).
7 E.g. extinção do contrato de emprego de servidor público celetista, que completa 70 ou 75 anos de idade, “extinção” do contrato de trabalho do trabalhador aposentado especial que permanece no ambiente nocivo ou a ele retorna, “extinção” do contrato de emprego por força de aposentadoria espontânea.8HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Ed. Moderna, 2015.
1.1. Força Maior prevista no artigo 501 e seguintes da CLT
O capítulo VIII da CLT, com a nomenclatura “Da força Maior”, estabelece, em um primeiro momento, o enquadramento fático do que seja força maior e, em seguida, quais as consequências financeiras para esta situação, espécie de resolução involuntária, trazendo, além da possibilidade de pagamento pela metade da indenização no caso de extinção do contrato, também a possibilidade de redução salarial.
Conceitua-se força maior como o “poder ou razão mais forte, decorrente da irresistibilidade do fato que, por sua influência, impeça a realização de obrigação a que se estava sujeito”8 .Nesse sentido, a pandemia causada pelo coronavírus, com a consequente determinação de isolamento/quarentena e fechamento de vários estabelecimentos, enquadra-se perfeitamente nesta conceituação. Com isso, o não funcionamento das atividades em razão do fechamento do comercial ou por ordens de isolamento geradas pela Pandemia encontra-se no tipo quadro de força maior, previsto no art. 502 e seguintes da CLT, caso em que o empregador não concorreu, direta ou indiretamente, com esta situação. Não sendo, portanto, caso de imprevidência do empregador, a legislação trabalhista lhe concede algumas vantagens para fins rescisórios, tais como: em caso de contrato por prazo indeterminado, não tendo direito à estabilidade, metade do que seria devido em caso de rescisão sem justa causa; e, havendo contrato por prazo determinado, aquela a que se refere o art. 479 desta Lei, reduzida igualmente à metade.
Entretanto, caso não ocorra a extinção da empresa, resta mantida, ainda, a obrigatoriedade das verbas trabalhistas em face da cessão do contrato de emprego. Assim, temos no segundo momento a discussão se é possível a redução salarial conforme previsto no art. 5039 da CLT.
Fazendo uma análise sistêmica, é necessário tecer alguns comentários quanto ao conteúdo do artigo 503 da CLT. O referido artigo prevê a possibilidade de redução geral de salários até 25%; já a CF 88 menciona apenas ser possível a redução salarial por meio de negociação coletiva, vide art. 7, VI, da CF. A doutrina sempre sustentou que o referido artigo não havia sido recepcionado pela nova ordem constitucional, que impõe o requisito da negociação coletiva. Por consequência lógica, o artigo 2º da MP 927/2020 permite a livre negociação entre empregado e empregador, ou seja, de forma implícita, a redução de salários por acordo individual também estaria, teoricamente, sob o manto da inconstitucionalidade.
Porém, no decorrer da escrita deste artigo, foi publicada, em 1º de abril de 2020, a MP 936/20, essa que foi convertida na Lei 14.020/20, em 6 de julho de 2020, e trouxe, além da possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, a possibilidade de redução salarial com correspondente redução de jornada (no percentual de 25%, 50% e 70%) por acordo individual entre empregado e empregador pelo prazo de 240 dias (este prazo no Brasil está sendo prorrogado enquanto permanece o estado de calamidade, inicialmente era o limite de 90 dias, passou para 120, após 180 e atualmente é 240), com a finalidade de preservação dos empregos, inclusive prevendo a contrapartida de preservação dos empregos 10 . A realidade é que a MP 936/20 (convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020) prevê inclusive redução salarial em percentual maior que o previsto pelo artigo 503 da CLT, todavia, em contrapartida, institui um benefício do governo, calculado com base no percentual da redução e do seguro desemprego que este profissional teria direito a receber, para que tenha um prejuízo menos significativo em sua remuneração 11 .
De toda sorte, restringe-se, portanto, a força maior a uma atenuação da carga financeira imposta ao empregador no momento da rescisão contratual, ao mesmo tempo em que traz um prejuízo econômico ao empregado, que poderá receber a rescisão pela metade ou até sofrer redução salarial.
Nesse sentido, em situações de força maior, mesmo com as previsões de suspensão e redução salarial, ambas trazidas pela MP 936 (convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020), percebe-se ainda que, embora o empregador se desonere dos salários e verbas decorrentes, ele ficará responsável pela estabilidade dos contratos de trabalho pelo prazo de 240 dias (este prazo no Brasil está sendo prorrogado enquanto permanece o estado de calamidade, inicialmente era o limite de 90 dias, passou para 120, após 180 e atualmente é 240), sob pena de indenização ao empregado quando não houver razões para a dispensa sem justa causa 12 . Em parte, é de responsabilidade do empregador a manutenção dos contratos de trabalho, inclusive no caso de sua suspensão. A realidade é que a manutenção das obrigações trabalhistas pelo empregador funda-se na teoria do risco do negócio, princípio da alteridade, prevista no art. 2º da CLT e independe de dolo ou culpa. Ou seja, a empresa assume os riscos da atividade econômica.
Por vezes, algumas empresas terão reservas para assumir riscos da atividade econômica na parcialidade, outras não poderão cumprir com suas obrigações. Então, no presente contexto, em que há determinações governamentais como, e.g., o Decreto 55.154, determinando a manutenção das restrições de funcionamento dos estabelecimentos comerciais em todo o Rio Grande do Sul, indaga-se se seria uma hipótese de manutenção das obrigações pelo empregador, ou seria de ônus do poder público, conforme disposto no artigo 486 da CLT, no qual se encontra a teoria factumprincipis, que é uma espécie do gênero força maior.
Vólia Bomfim, por sua vez, faz a distinção entre o gênero (força maior) e a subespécie (factumprincipis) com os seguintes exemplos: a) se mercearia ou farmácia não for impedida de funcionar pelo poder público, mas em razão da quarentena, o número de clientes para sua manutenção não for suficiente e tiver que encerrar a atividade, estaríamos diante da hipótese da força maior; b) se situação for em razão de fechamento, em algumas regiões, de atividades específicas, tais como shoppings, teatros, cinemas e comércios, não essenciais, em geral, e ocorre a extinção da empresa ou do estabelecimento, neste caso resta caracterizado o factumprincipis. 13
A referida autora subentende que os atos administrativos praticados pelas autoridades públicas, determinando o fechamento do comércio, para cumprir as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde), consistem em atos de império, já que não são de obediência facultativa e são praticados de ofício pela Administração. Assim, enquadram-se na teoria do factumprincipis.
Esmiuçando um pouco o conceito de ato administrativo de império, trazemos a lição de Aloísio Zimmer, ao mencionar que a:
“[…] existência de uma supremacia do Poder Público sobre o espaço de atuação privada, dos atos de gestão, sempre despidos da possibilidade de uma construção de uma relação vertical entre a Administração e os seus administrados. As relações que decorrem dos atos de império têm como característica a verticalidade.” 14
O art. 486, caput, da CLT 15 , sob a luz do direito administrativo, prescreve que fica caracterizado o factumprincipis quando ocorre a extinção do contrato pelo fechamento temporário ou parcial de um estabelecimento ou atividade, e, neste caso, a autoridade municipal, estadual ou federal que determinou a medida ficará responsável pelas verbas rescisórias.
Deste modo, na hipótese de se entender pela oneração do poder público, tem-se como fundamento o art. 486 da CLT, que traz a previsão de que, no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.
Nesta lógica, Vólia Bonfim defende que, se houver a extinção da empresa na atual conjuntura pandêmica, nos termos retromencionados, será caso de aplicação do referido instituto. Posiciona-se no mesmo sentido Enoque Ribeiro do Santos 16 , ao afirmar que, se o empregador não concorreu direta ou indiretamente para o evento danoso e foi atingido frontal e substancialmente em sua situação econômica e financeira, o Estado deverá responder solidariamente por eventuais custos com a rescisão de contratos de trabalho de empregados da empresa, enquanto essa responderá por suas inerentes responsabilidades contratuais (salários pendentes, férias atrasadas, normais, terço constitucional etc.). Desta forma, para os autores, a impossibilidade de continuidade da relação de emprego, em razão da suspensão das atividades econômicas por decretos governamentais, implica na possibilidade de aplicação do art. 486 da CLT.
Em contraponto, há corrente doutrinária que entende que não seria o caso da aplicação do art. 486 da CLT. Rodrigo Trindade 17 afirma ser possível falar em factumprincipisquando presentes os seguintes requisitos: a) paralisação temporária ou definitiva da empresa ou estabelecimento; e b) determinação de paralisação por ato de autoridade do Estado. Para o autor, adicionalmente, deve haver o elemento discricionário do Administrador, ou seja, ele deverá realizar um juízo de conveniência e oportunidade, o caso mais clássico é a desapropriação 18 . Nessa lógica, já decidiu o TST:
“TRT3 – ‘FACTUM PRINCIPIS’. DESAPROPRIAÇÃO. RESCISÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. RESPONSABILIDADE. AVISO PRÉVIO INDENIZADO. MULTA DE 40% DO FGTS. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Deve ser admitida a ocorrência do ‘factumprincipis’ quando a rescisão do contrato de trabalho decorrer de ato da administração pública que não pode ser evitado pelo empregador, que se vê obrigado a encerrar suas atividades econômicas. Órgão: Turma Recursal de Juiz de Fora/TRT 3ª Região. Processo: RO 0001757-58.2013.5.03.0036. Disponibilização: DEJT – 19/02/2015 TST –‘AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. CONFIGURAÇÃO DO FACTUM PRINCIPIS. DESAPROPRIAÇÃO DE TERRENO RURAL. FIM SOCIAL DA PROPRIEDADE. RESPONSABILIDADE. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 486 DA CLT. Verificado que o posicionamento adotado no acórdão regional baseou-se na interpretação do artigo 486 da CLT, e que a interpretação conferida não atenta contra a literalidade da mencionada norma, não há de se falar em modificação do julgado. Sendo indiscutível a natureza interpretativa da matéria combatida, certo é que, se uma norma pode ser diversamente interpretada, não se pode afirmar que a adoção de exegese diversa daquela defendida pela parte enseja violação literal dessa regra, pois essa somente se configura quando se ordena expressamente o contrário do que o dispositivo estatui. Nesta senda, competia ao Recorrente demonstrar a interpretação diversa dos dispositivos em questão entre Tribunais Regionais do Trabalho ou a SBDI-1 desta Corte, nos termos do artigo 896, ‘a’, da CLT, ônus do qual não se desincumbiu. Agravo de Instrumento conhecido e não provido. […]’” (AIRR-1770-57.2013.5.03.0036, 4ª Turma, Relatora Ministra Maria de Assis Calsing, DEJT 18.12.2015).
No julgado mencionado, está presente a discricionariedade, que consiste na faculdade conferida à autoridade administrativa em escolher uma entre várias soluções possíveis, diante de uma circunstância certa 19 . Aqui não há imposição legal para atuar, mas há uma autorização para sua prática. Observa-se, portanto, a imprescindibilidade de um leque de possibilidades para se falar em ato discricionário, caso contrário, afastar-se-ia a análise de conveniência e oportunidade. No tocante à desapropriação, propriamente dita, faz-se uma análise de proporcionalidade entre o bem individual e coletivo, tem-se a possibilidade de manter a propriedade com seu proprietário original, sem que prejuízos irreparáveis ocorram com o restante da população, não há uma urgência iminente. Analisa-se a necessidade/utilidade pública e o interesse social. O cerne da questão diz respeito ao direito de propriedade e à função social da propriedade.
Quanto à necessidade ou utilidade pública, é interessante o apontamento de Odete Medauar: “A utilidade pública aparece quando a utilização da propriedade é conveniente e vantajosa ao interesse coletivo, mas não constitui imperativo irremovível”(grifo nosso).
Por outro lado, quando falamos em guerras, pandemias, tsunamis e outras situações de força maior em sentido estrito, não se observa o juízo de conveniência e oportunidade, pois como bem leciona Rodrigo Trindade:
“[…] embora o ente estatal seja o agente imediato do prejuízo empresarial, o verdadeiro nexo de causalidade se dá com a catástrofe de causa humana ou natural, estando a Administração, tanto quanto a própria empresa, compelida a agir rapidamente para preservar a vida dos empregados e demais cidadão. A ordem estatal de cessão ou diminuição das atividades é apenas uma consequência prática da catástrofe em tela, não um fato da Administração ou factum principis.”
Em outros termos, a causa inicial da paralisação das atividades não foi o ato de governo, mas a rápida disseminação do coronavírus (força maior).
Na presente questão pandêmica, os valores diretamente envolvidos são vida (paralisação de atividades) versus economia (recessão), ainda que, indiretamente, em face de uma recessão, possam ocorrer diversos outros prejuízos decorrentes (e.g. verbas trabalhistas).
Necessário se faz pontuar as importantes reflexões realizadas por Georgenor Filho e Ney Maranhão 20 , ao mencionarem que, diante de um cenário extremamente delicado com repercussões profundas e incalculáveis no campo das relações do trabalho, surgem a MP 927, de março de 2020, e a MP 936, de abril de 2020 21 (convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020), que se restringem explícita e especificamente na hipótese de força maior, agasalhada no art. 501 da CLT, afastando, por conseguinte, o art. 486 da CLT, o qual deve ser interpretado com máxima restrição, diante da excepcionalidade jurídica 22 . Não é demais lembrar que as decisões dos Governadores e Prefeitos, e demais agentes públicos, estão embasadas nas recomendações de isolamento em nível mundial, emanadas pela Organização Mundial de Saúde. Ademais, no âmbito interno, o próprio art. 196 da Constituição Federal prevê que a “saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença”. Assim, a Constituição Federal é clara no sentido que é dever legal do Estado garantir saúde à população, promovendo a redução ao risco de contaminação por doenças.
Enriquecendo a discussão, é importante trazer à baila reflexões imprescindíveis proferidas pelo Ministro Alexandre Belmonte 23 . O primeiro ponto exarado é que não seria causa nem de força maior, pois esta demandaria um ato humano, inexistente no caso concreto; nem de <factum principis, na medida em que o nexo causal da paralisação das atividades não teria vinculação direta com o ato administrativo, mas com a pandemia do coronavírus. Para o magistrado, a análise ficaria em torno da teoria da imprevisão, especificamente no caso fortuito 24 , e que esta estaria abarcada pelos art. 501 e ss., argumentando que tal conclusão pode ser extraída do contexto histórico em que foi elaborada/compilada a CLT (2ª Guerra Mundial), ainda que com a nomenclatura de força maior. Entretanto, ressalta Belmonte que, diferentemente das relações civis em que o caso fortuito libertaria os contratantes de quaisquer consequências jurídicas, o regramento trabalhista tem como um dos nortes o art. 2º da CLT (o risco do negócio), mantendo a obrigação de pagamento parcial das verbas rescisórias.
Outrossim, um dos princípios que regem o ato administrativo e a administração pública em geral é o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Esse princípio deve ser compreendido como o interesse da sociedade. Ou seja, o conjunto dos indivíduos é mais amplo do que a soma das individualidades. Aqui, sem dúvida, não se busca uma homogenia de pensamento por todos os indivíduos, mas uma “sintonia com o pensamento de uma parte da sociedade e, ao mesmo tempo, a percepção de uma exigência ética, que pode sazonalmente ter maior ou menor legitimidade popular”. 25
Lembra-se, ainda, que as questões trabalhistas não se afastam do interesse público, quando, no art. 8º da CLT, como baliza interpretativa, dita que “nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público”.
Além de analisar as repercussões pecuniárias ao Estado sob a ótica do factum principis, sob a ótica trabalhista e com pinceladas do direito administrativo, faz-se necessário tecer algumas considerações acerca da responsabilidade civil do Estado por atos legislativos, em virtude dos decretos expedidos de isolamento e quarentena, que atingem direta e indiretamente as relações trabalhistas.
O primeiro ponto é relembrar que os atos legislativos do Estado decorrem tanto de produções primárias (poder legislativo) quanto secundárias (poder executivo) de efeitos concretos, vide o art. 59 da CF 26 , que apresenta o rol normativo estatal. E que, geralmente, prepondera a irresponsabilidade do Estado pelo desempenho da função legislativa. A base desta irresponsabilidade seria a soberania, as características de generalidade e abstração da lei, a concepção da lei como um ato de criação de direitos, a representatividade dos parlamentos e a inviolabilidade dos parlamentares 27 . Entretanto, o dever de indenizar pode surgir em dois contextos, o primeiro, quando surge uma quebra evidente do princípio da igualdade, em que se observa um flagrante desequilíbrio na distribuição dos prejuízos; e o segundo, quando parlamentares e servidores da Administração praticam atos mediante a comprovação de culpa manifesta na sua expedição, e de maneira ilegítima e lesiva28.
De forma mais detalhada, aponta a doutrina 29 que, para haver dano lícito indenizável, em razão de ato administrativo, faz-se necessário o preenchimento de alguns requisitos, quais sejam: a.1) existência de dano economicamente mensurável; a.2) dano especial; a.3) dano anormal; a.4) dano deve incidir sobre um direito. Na presente análise, observa-se o preenchimento de quase todos os requisitos, entretanto, não se observa a especialidade, pois não atinge apenas um grupo de indivíduos, mas toda a coletividade, tratando-se de prejuízo genérico, sobre o qual não incide o dever de indenizar.
Luiz Fernando Calegari 30 , ao discriminar os danos, frisa que os decretos, que determinam que a população fique de quarentena, atingiram diretamente os empregadores, entretanto, os trabalhadores autônomos também estão prejudicados, assim como os intermitentes e toda a sociedade e, portanto, não há singularidade, ou seja, não há um único grupo individualmente atingido.
Nesta lógica, os decretos das autoridades públicas não demonstram que houve quebra evidente do princípio da igualdade, na medida em que toda a sociedade foi atingida em decorrência das determinações relativas à quarentena e das medidas provisórias envolvendo a relação de emprego, bem como, em princípio, não se verifica nenhum vício na sua expedição, nem em seu conteúdo (inconstitucionalidade).
Desta forma, também, por estes argumentos, poderia ser minimizado o dever de indenizar do Estado no tocante aos contratos de trabalho, pois a realidade é que o Estado, diante da orientação mundial de saúde, em razão da Covid-19, se viu obrigado a promulgar medidas de proteção à vida, que atingiram toda sociedade.
Porém, não se pode desconsiderar o compromisso social que o Estado tem de promover os direitos sociais conforme prevê o art. 6º da CF, em especial de preservação do Emprego, a fim de proteger o país para que este não aprofunde em uma recessão econômica. Nesse sentido, cabe analisar de que forma o Estado tem buscado cumprir seu papel.
9 CLT, “Artigo 503 – É lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região.
Parágrafo único – Cessados os efeitos decorrentes do motivo de força maior, é garantido o restabelecimento dos salários reduzidos”.
10 “Artigo 7º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregador poderá acordar a redução proporcional da jornada de trabalho e de salário de seus empregados, por até noventa dias, observados os seguintes requisitos:I – preservação do valor do salário-hora de trabalho;II – pactuação por acordo individual escrito entre empregador e empregado, que será encaminhado ao empregado com antecedência de, no mínimo, dois dias corridos; eIII – redução da jornada de trabalho e de salário, exclusivamente, nos seguintes percentuais:a) vinte e cinco por cento;b) cinquenta por cento; ouc) setenta por cento. Disponível em: [www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm].Acesso em: 31.03.2020.
11 O assunto foi discutido na ADI 6.370, que tramita no STF,na qual houve decisão no sentido de que há anecessidade de comunicar a suspensão ou redução ao sindicato da categoria para anuência e validade do termo/acordo individual.Porém, regra geral, basta a comunicação não há necessidade da concordância do Sindicato para validade do da suspensão ou redução estabelecida. Disponível em: [portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5886604].Acesso em: 31.10.2020.
12 Transcreve-se o teor do artigo 10:“Fica reconhecida a garantia provisória no emprego ao empregado que receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, de que trata o art. 5º, em decorrência da redução da jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária do contrato de trabalho de que trata esta Medida Provisória, nos seguintes termos:
I – durante o período acordado de redução da jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho; e
II – após o restabelecimento da jornada de trabalho e de salário ou do encerramento da suspensão temporária do contrato de trabalho, por período equivalente ao acordado para a redução ou a suspensão.
§ 1º A dispensa sem justa causa que ocorrer durante o período de garantia provisória no emprego previsto no caput sujeitará o empregador ao pagamento, além das parcelas rescisórias previstas na legislação em vigor, de indenização no valor de:
I – cinquenta por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a vinte e cinco por cento e inferior a cinquenta por cento;
II – setenta e cinco por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a cinquenta por cento e inferior a setenta por cento; ou
III – cem por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, nas hipóteses de redução de jornada de trabalho e de salário em percentual superior a setenta por cento ou de suspensão temporária do contrato de trabalho”. Disponível em: [www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv936.htm].
13 BOMFIM, Vólia. Breves Comentários à MP 927.20 e aos Impactos da Covid-19 nas relações de emprego.Genjurídico, 25 de março de 2020.Disponível em: [genjuridico.com.br/2020/03/25/mp-927-impactos-do-covid-19/]. Acesso em: 31.03.2020. 14 ZIMMER JÚNIOR, Aloísio. Curso de direito administrativo. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008. p. 152.
15 CLT:“Artigo 486. No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”.
16 SANTOS, Enoque Ribeiro do. Responsabilidade do empregador e fato do príncipe nos tempos de Coronavírus. Genjurídico, 20 de março de 2020. Disponível em: [genjuridico.com.br/2020/03/20/responsabilidade-empregador-coronavirus/]. Acesso em: 01.04.2020.
17 TRINDADE, Rodrigo. Força Maior e FactumPrincipis – Responsabilidades nas paralisações decorrentes da Covid-19.Revisão Trabalhista,27 de março de 2020. Disponível em: [revisaotrabalhista.net.br/2020/03/27/forca-maior-e-factum-principis-responsabilidades-nas-paralisacoes decorrentes-do-covid-19/]. Acesso em: 31.03.2020.
18 Figura jurídica pela qual o poder público, necessitando de um bem para fins de interesse público, retira-o do patrimônio do proprietário mediante prévia e justa indenização.
19 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.p. 107.
20 FILHO, Georgenor; MARANHÃO, Ney. Covid-19 – Força Maior e Fato do Príncipe. Academia Brasileira de Direito do Trabalho.Disponível em:
[www.andt.org.br/f/Forc%CC%A7a%20Maior_Fato%20do%20Pri%CC%81ncipe_Ney_Georgenor.pdf].Acess o em: 31.03.2020.
21 Umas das medidas de enfrentamento à doença, em face da declaração de Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN), vide Portaria 188, de fevereiro de 2020.
22 O mesmo entendimento percebe-se da fundamentação da decisão proferida em sede de Ação Civil Pública 0100267-12.2020.5.01.0006, do dia 30.03.2020, que extinguiu o processo sem julgamento do mérito, afirmando que a situação em tela “se afasta de tal hipótese, quando em verdade estamos diante da força maior, ou seja, de uma situação sem parâmetros, sem paradigma, atípica, desproporcional, absurdamente imprevisível, além do controle humano”, mesmo que extinto sem julgamento do mérito, podemos aproveitar a parte que é explorado o artigo 486 da CLT. Disponível em: [www.conjur.com.br/dl/acao-bloqueio-500-bi-combater1.pdf]. Acesso em: 02.03.2020.
23 BELMONTE, Alexandre de Souza Agra, Factum principis e força maior em tempos de pandemia. Café da manhã com a ABDT Brasil. 16 de abril de 2020. (58m15s). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=sehccqlVqco . Acesso em: 31.03.2020.
24 No ordenamento jurídico pátrio, há controvérsia se caso fortuito seria sinônimo de força maior, mas os que apontam diferença mencionam que o caso fortuito estaria vinculado a obra de acidentes naturais, enquanto a força maior seria decorrente de um fato de um terceiro. Vide TADEU, S.A. Responsabilidade civil: nexo causal, causas de exoneração, culpa da vítima, força maior e concorrência de culpas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 16, n. 64, p. 134-165, out./dez. 2007.
25 ZIMMER JÚNIOR, Aloísio. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico. 2008.p. 44.
26 “Artigo 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I – emendas à Constituição; II -leis complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; VII – resoluções. Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis”. Disponível em: [www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm]. Acesso em: 01.04.2020.
27 LUVIZOTTO, Juliana Cristina. Responsabilidade civil do Estado legislador: atos legislativos inconstitucionais e constitucionais. São Paulo: Almedina, 2015.p. 119.
28 ZIMMER JÚNIOR, Aloísio. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico. 2008.p. 310.
29 Nesse sentido, MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012; CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2015.
30 CALEGARI, Luiz Fernando. Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT: análise a partir da responsabilidade civil da administração pública e da possibilidade de existência de excludentes de responsabilidade. JUSBRASIL.Disponível em: [luizfcalegari.jusbrasil.com.br/artigos/827660412/os-riscos-de-se-aplicar-o-art-486-da-clt-analise-a-partir da-responsabilidade-civil-da-administracao-publica-e-da-possibilidade-da-existencia-de-excludentes-de-re sponsabilidade?ref=serp]. Acessoem: 11.03.2020.
31 OMS.Getting your workplace ready for COVID-19. Disponívelem: [www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/getting-workplace-ready-for-covid-19.pdf].Acessoem: 11.03.2020.
32 Umas das medidas de enfrentamento à doença, em face da declaração de Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN), vide Portaria 188 de fevereiro de 2020.
2. Compromissos sociais a partir dos princípios da solidariedade e fraternidade
Em atendimento ao compromisso social, as autoridades públicas têm publicado diversas leis e medidas provisórias. No início de fevereiro, a exemplo, foi sancionada no Brasil a Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Em 3 de março 31 , a OMS reforçou a necessidade de evitar multidões e sugere o teletrabalho no caso de epidemia. Ocorre que este tipo de trabalho não é adequado a toda a atividade econômica e, com isso, infelizmente resultou drasticamente no fechamento de postos de trabalho em vários níveis da economia.
No Brasil, o Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020, do Congresso Nacional, reconheceu o estado de calamidade pública; e a MP 927, de março de 2020, e a MP 936, de abril de 2020 32 , essa que foi convertida na Lei 14.020/20, em 6 de julho de 2020, referem-se à situação como de “força maior”. Ou seja, no plano legislativo, desde a edição da Lei 13.979/2020, a situação de “emergência de saúde pública” é vista como força maior. Em cima desta “força maior”, como força da natureza, independentemente da ação humana, temos algumas medidas adotadas pelo governo para conter o surto, e, entre elas, a determinação do isolamento social, que leva ao fechamento temporário de estabelecimentos. Isso sim, factumprincipis, ainda que secundariamente. No entanto, a forma melhor de definir a situação é como “força maior”, visto que a pandemia é o fato causal principal a definir a situação.
No entanto, vivemos um estado de excepcionalidade, de calamidade pública, mas não estado de exceção, o qual ocorre fora de qualquer norma. Este estado de emergência é regulado por uma série de normas, que mantém contato com a ordem anteriormente estabelecida. Portanto, as responsabilidades de cada uma das entidades envolvidas, em princípio, devem permanecer. Por excepcionalidade da situação, entende-se que os efeitos econômicos negativos das medidas restritivas de circulação de bens e pessoas não podem ser imputados diretamente e unicamente aos governos, sob pena de sobrecarregar um Estado social que já está com demandas extremas e gastos sociais intensivos para diminuir os efeitos da pandemia.
Nestes termos, sempre foi aceitável para o Direito do Trabalho, em condições excepcionais, que os salários fossem reduzidos para a manutenção do emprego. Isso também é preconizado pelo regulamento da força maior na CLT, a qual prevê, segundo o art. 502 da CLT:
“Ocorrendo motivo de força maior que determine a extinção da empresa, ou de um dos estabelecimentos em que trabalhe o empregado, é assegurada a este, quando despedido, uma indenização na forma seguinte: no caso do empregado sem estabilidade, metade da que seria devida em caso de dispensa sem justa causa; para o empregado contratado a prazo determinado, seria devida a metade da indenização do Art. 479 da CLT.”
Ainda o art. 503 define que:
“É lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região. Parágrafo único – Cessados os efeitos decorrentes do motivo de força maior, é garantido o restabelecimento dos salários reduzidos.”
Ao analisarmos o Direito Comparado 33 , todos os países, geralmente, aceitam o trabalho remoto, diminuição de salário e repartição entre Estado (governos) e empregadores dos ônus sociais da pandemia.
O momento exige uma concertação social, o que a OIT menciona como diálogo social, em que patrões, empregados e governos devem rever seus pactos para atingir um nível aceitável de solução, a fim de garantir o bem maior que é a vida, a subsistência. A vida deve ser garantida com a menor possibilidade de restrições econômicas, e aqui estão os juízos de conveniência e oportunidade das medidas adotadas pelos governos, que exigem o diálogo na sociedade.
Após a publicação da Lei 13.979/2020, em 06 de fevereiro de 2020, que determinou que a ausência das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, tais como: “I – isolamento; II – quarentena; III – determinação de realização compulsória de: a) exames médicos; b) testes laboratoriais; c) coleta de amostras clínicas […]”34 , seria considerada falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada; bem como o Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020, do Congresso Nacional, que reconheceu o estado de calamidade pública, assim como diversos decretos municipais e estaduais determinando o fechamento do comércio, somente em 1º de abril o Estado publicou a MP 936/20 (convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020). Esta MP possibilitou algumas alternativas como a suspensão do contrato de trabalho e a autorização da redução do salário (nos percentuais de 25%, 50% e 70%) com correspondente redução de jornada, medidas essas que desoneram os empregadores e concedem uma segurança financeira aos empregados, por meio da concessão e pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda. O benefício será pago no percentual correspondente ao seguro desemprego a que o empregado tem direito. Antes de publicar a MP 936/20, o governo havia publicado a MP 927/20, em 23 de março, também trazendo algumas alternativas ao empregador: a) a possibilidade de antecipação de férias, mesmo que o período aquisitivo não tenha sido concluído com regras de pagamento do terço constitucional até 20 de dezembro; b) a possibilidade de banco de horas, em que o empregado pode compensar as horas devidas no período de 18 meses; c) possibilidade de antecipação de feriados. Embora estas alternativas já trouxessem um fôlego aos empregadores, ainda lhes mantinham toda responsabilidade pelos contratos de trabalho. Assim, muitos empregadores mantiveram a decisão de demitir os empregados.
Retomando o histórico das medidas provisórias em ordem cronológica, um dia após a publicação da MP 936/20 (convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020 ), o Governo publicou a MP 937/20, em 02 de abril, que trouxe a previsão do Auxílio Emergencial de Proteção Social a Pessoas em Situação de Vulnerabilidade, devido à Pandemia da Covid-19 – chamado corona voucher –, para os trabalhadores informais, autônomos e em situação de vulnerabilidade, no valor de R$ 600,00. Ainda, sucessivamente, o Estado publicou a MP 944, em 03 de abril, que criou o chamado “PROGRAMA EMERGENCIAL DE SUPORTE A EMPREGOS” para pessoas jurídicas que tenham tido, em 2019, receita bruta anual superior a R$ 360 mil e igual ou inferior a R$ 10 milhões. O programa viabiliza operações de crédito com empresas e cooperativas (salvo as de crédito) para financiar o pagamento de folha salarial. Ou seja, trata-se de uma linha de crédito emergencial para cobrir dois meses de folha de pagamento, condicionando tal financiamento à assunção, pelo empregador, de não dispensar imotivadamente, durante 60 dias após a liberação da última parcela do crédito. A medida provisória prevê 36 meses para pagar, após uma carência de seis meses, e, praticamente sem juros, já que os juros de 3,75% a.a. mal cobrem a expectativa inflacionária.
Em seguimento, em 4 de abril, o Governo publicou a MP 945, trazendo medidas emergenciais para o setor portuário. E, em 07 de abril, publicou a MP 946, transferindo os recursos do PIS-PASEP para o FGTS, permitindo, a partir de 16.06, o saque de até R$ 1.045,00 da conta vinculada, pelos trabalhadores.
Em razão da MP 936 (convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020) ter sido, entre todas as medidas provisórias, a que mais desonerou os empregadores da responsabilidade única pelos contratos de trabalho no período de pandemia, destaca-se, agora, alguns pontos principais da referida MP.
Então, a partir desta, pode o empregador, pela aplicação da suspensão do contrato pelo prazo máximo de 240 dias (o qual, conforme já mencionado, constantemente está sendo prorrogado), ficar desobrigado a pagar salário e encargos de seus funcionários no respectivo período. Assim, neste período, o empregado receberá o valor integral, com base no seguro desemprego que tenha direito. Também pode o empregador optar pela redução salarial nos percentuais de 25%, 50% e 70%, com correspondente redução de jornada, pelo prazo máximo de 240 dias (o qual, conforme já mencionado, constantemente está sendo prorrogado), e, neste caso, o empregador pagará o salário e encargos correspondentes ao percentual de jornada que o empregado permaneceu trabalhando. No caso de redução, o governo irá complementar a renda, usando como base o valor do seguro desemprego. Assim, se o corte salarial for de 70%, o governo entrará com 70% do valor do seguro desemprego ao qual o trabalhador teria direito, caso fosse demitido. Conforme a MP, tanto a suspensão como a redução poderiam ser realizadas por acordo individual35. Importante registrar que em ambos os casos o empregador não poderá dispensar seus empregados pelo mesmo período que suspendeu ou reduziu o contrato de trabalho, sob pena de indenizar o empregado 36 . Há, assim, uma nova modalidade de garantia do emprego para estes empregados. Além do mais, para receber o respectivo benefício do governo 37 , não é necessário que este empregado tenha período de carência. Também, destaca-se que o empregado não perde o direito ao seguro desemprego caso seja dispensado posteriormente.
Embora as referidas medidas provisórias tenham sido publicadas com um pouco de atraso, frente aos comandos imprevisíveis de fechamento do comércio e condutas desesperadas de empregadores que procederam a diversas rescisões de contrato de trabalho, ainda em tempo o Estado, no cumprimento do seu dever social, ou seja, em face do compromisso social, buscou, por meio destas medidas provisórias, garantir direitos sociais mínimos previstos na Constituição Federal, a fim de evitar que o país entre em uma recessão econômica irreversível.
O que se percebe é que, no Brasil, a solidariedade social foi imposta pelas medidas provisórias que auxiliam concreta e financeiramente empregados e empregadores. Fala-se que a solidariedade impõe que o ente maior (governo) assuma a responsabilidade pelo bem dos entes menores (sociedade civil). Entretanto, a solidariedade é uma parte do que se tem estudado como fraternidade. No movimento da fraternidade, a parte que recebe auxílio deve dar uma contrapartida (ficar em casa, trabalhar, qualificar-se, no caso do empregado; reorganizar a atividade produtiva com menos riscos para todos, não dispensar empregados, adotar teletrabalho, no caso do empregador). Portanto, a fraternidade impõe um movimento de autorresponsabilidade de cada um para minimizar os reflexos negativos do desastre pandêmico.
Juridicamente, isso pode ser explicado pelo comando constitucional contido no preâmbulo da Constituição Federal, que menciona a necessidade da participação de todos na construção de uma sociedade fraterna, de forma coordenada. 38
A referência da Constituição Federal 39 à sociedade fraterna expressa uma especial forma de positivação do princípio da fraternidade na Constituição da República Federativa do Brasil, a qual refere, no Preâmbulo:
I – cinquenta por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a vinte e cinco por cento e inferior a cinquenta por cento;
II – setenta e cinco por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a cinquenta por cento e inferior a setenta por cento; ou
III – cem por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, nas hipóteses de redução de jornada de trabalho e de salário em percentual superior a setenta por cento ou de suspensão temporária do contrato de trabalho.§ 2º O disposto neste artigo não se aplica às hipóteses de dispensa a pedido ou por justa causa do empregado”.
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil” (grifo nosso).
Para Carlos Augusto Alcântara Machado 40 , há, portanto, um dever de que a ordem jurídica construa uma sociedade fraterna, com base na força normativa do preâmbulo. Esta é a lição do referido jurista brasileiro ao estudar a força normativa do texto em questão. 41 Portanto, no Brasil, o comando do Direito Constitucional Fraternal indica um caminho de diálogo pretendido pela OIT, e esse deve ser o vetor interpretativo deste momento de exceção. Isto é, governos, empregados e empregadores devem fazer sua parte para, em primeiro lugar, salvar vidas, e, do mesmo modo, manter a atividade produtiva na medida do possível, os postos de trabalho, as empresas em pé e a economia funcionando. O princípio da fraternidade aponta para a interdependência dos fatores de produção, da ordem econômica e da ordem social, sem que uma assuma a preponderância sobre a outra.
Voltando ao ponto sobre a aplicação da teoria do factumprincipis, vimos que, a partir desta, o Estado (governo) assume todo o encargo do isolamento social, o que representaria a aplicação do princípio de solidariedade sobre o qual se construiu o Estado Social. No entanto, pela adoção da teoria da força maior, entram em cena as contribuições dos empregados e empregadores para refrear os efeitos da Covid-19, ultrapassando-se a teoria da solidariedade social. Para além da discussão a respeito da responsabilidade do Estado pelos contratos de trabalho nos termos do art. 486 da CLT, o que se tem percebido é que o Estado está tomando medidas no sentido de amenizar a crise.
Além disso, do ponto de vista do empregado, a pior alternativa é a consideração do factumprincipis, visto que esse exige uma declaração judicial e uma espera injustificada para obtenção dos valores salariais e alimentares, em um momento de dificuldades de funcionamento normal das instituições. Em síntese, o que se quer propor é que, talvez, o mal menor seja a adoção da tese da força maior, que permite, excepcionalmente e com as proteções devidas pelos sindicatos, bem como com limitações temporais, a manutenção do emprego e sobrevivência de patrões e empregados, para que a economia volte a crescer e gerar o bem comum. É o que a sociedade fraterna do preâmbulo da Constituição requer neste momento de risco e incerteza.
Nesse sentido, transcreve-se trecho da decisão do ministro Lewandowski:
“A comunicação ao sindicato, não há dúvida, prestigia o diálogo entre todos os atores sociais envolvidos na crise econômica resultante da pandemia para que seja superada de forma consensual, segundo o modelo tripartite recomendado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT. E, como bônus, permite-se que os acordos individuais sejam supervisionados pelos sindicatos, para que possam, caso vislumbrem algum prejuízo para os empregados, deflagrar a negociação coletiva, prevista nos já citados arts. 7º, VI, e 8º, VI, da Carta da República. A interpretação conforme à Constituição adotada na decisão embargada atende também à recentíssima Resolução 1/2020, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, intitulada ‘Pandemia e Direitos Humanos nas Américas’, que exorta os Estados-membros, em seu item 5, a assegurarem o respeito aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais de sua população (Resolução 1/2020, de 10 de abril de 2020, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos encontra-sedisponível em: [www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1- 20-es.pdf]. Acesso em: 11.04.2020). E mais: recomenda que os Estados-membros da CIDH garantam rendas e meios de subsistência a todos os trabalhadores, priorizando a proteção dos empregos, dos salários, da liberdade de associação e da negociação coletiva, bem como outros direitos, laborais e sindicais.” 42
Para além da discussão a respeito da responsabilidade do Estado pelos contratos de trabalho nos termos do art. 486 da CLT, o que se tem percebido é que o Estado está tomando medidas no sentido de amenizar a crise.
A realidade é que muito se discutirá no Judiciário quanto à responsabilidade dos empregadores ou a responsabilidade ou não do Estado pelos contratos de trabalho (nos termos do art. 486 da CLT). Porém, acredita-se que as medidas provisórias publicadas pelo Governo com diversas alternativas para os empregadores, inclusive trazendo para si (Estado) a responsabilidade do pagamento de um Benefício Social de preservação dos empregados, serão avaliadas pelos magistrados, pois parece que o Estado está cumprindo seu compromisso social, responsabilizando-se em parte pelos contratos de trabalho.
33 Vide palestras realizadas no Colóquio Internacional Covid-19 e o Direito do Trabalho: sistemas jurídicos em comparação – Itália, Espanha, Uruguai, Brasil. Disponível em: [www.youtube.com/channel/UCr7vX2_Yw7HAz0QL5pSo1Og]. Acesso em: 15.04.2020.
34BRASIL. Lei Nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Brasília, Presidência da República, 2020. Disponível em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L13979.htm.Acesso em: 11.03.2020.
35 O assunto foi discutido naADI 6.370, que tramita no STF, na qual houve decisão no sentido de que há anecessidade de comunicar a suspensão ou redução ao sindicato da categoria para anuência e validade do termo/acordo individual. Porém, regra geral, basta a comunicação não há necessidade da concordância do Sindicato para validade do da suspensão ou redução estabelecida. Disponível em: [portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5886604]. Acesso em: 31.10.2020.
36 “Artigo 10.Fica reconhecida a garantia provisória no emprego ao empregado que receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, de que trata o art. 5º, em decorrência da redução da jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária do contrato de trabalho de que trata esta Medida Provisória, nos seguintes termos:
I – durante o período acordado de redução da jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária do contrato de trabalho; e
II – após o restabelecimento da jornada de trabalho e de salário ou do encerramento da suspensão temporária do contrato de trabalho, por período equivalente ao acordado para a redução ou a suspensão. § 1º A dispensa sem justa causa que ocorrer durante o período de garantia provisória no emprego previsto no caput sujeitará o empregador ao pagamento, além das parcelas rescisórias previstas na legislação em vigor, de indenização no valor de:
I – cinquenta por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a vinte e cinco por cento e inferior a cinquenta por cento;
II – setenta e cinco por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário igual ou superior a cinquenta por cento e inferior a setenta por cento; ouIII – cem por cento do salário a que o empregado teria direito no período de garantia provisória no emprego, nas hipóteses de redução de jornada de trabalho e de salário em percentual superior a setenta por cento ou de suspensão temporária do contrato de trabalho.§ 2º O disposto neste artigo não se aplica às hipóteses de dispensa a pedido ou por justa causa do empregado”. Disponível em: [www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv936.htm].
37 Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda.
38 BARZOTTO, Luis Fernando. Sociedade Fraterna. In:Direito e fraternidade: outras questões. Porto Alegre: Ed. Sapiens, 2018.p.43-54.
39 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil.Promulgada em 5 de outubro de 1988.
40 MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. A garantia constitucional da fraternidade: constitucionalismo fraternal. São Paulo: PUC, 2014. 272 f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014. No mesmo sentido surgem decisões invocando o princípio da fraternidade que toma corpo na jurisprudência como se verifica nos seguintes excertos: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2.649. Requerente: ABRATI – Associação Brasileira das Empresas de Transporte Interestadual, Intermunicipal e Internacional de Passageiros. Requerido: Presidente da República. Relatora: Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha. Julgado em: 08.05.2008, DJe de 17.10.2008.BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 74.123/RS, Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Julgado em: 17.11.2016, DJe 25.11.2016.
41 Na mesma linha, mas sob o fundamento da inalterabilidade do preâmbulo, o jurista lusitano Paulo Ferreira da Cunha explicita que: “Este Preâmbulo da Constituição brasileira afigura-se-nos a grande cláusula pétrea por detrás das cláusulas pétreas elencadas expressamente”. FERREIRA DA CUNHA, Paulo. Geografia Constitucional Sistemas Juspolíticos e Globalização. Ensaios & Monografias.Lisboa: QUIDJURIS editora, 2009. p. 95. Este jurista entende que o estudo da fraternidade diz respeito a um direito pós-moderno pactuado, nãoviolento, inclusivo, de grandes espaços, de nova metodologia e hermenêutica.
42 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Diário da Justiça eletrônico. Nº 89/2020, 14 de abril de 2020. Disponível em: [www.stf.jus.br/arquivo/djEletronico/DJE_20200414_089.pdf].Acessoem: 11.03.2020.
Considerações finais
Os operadores do Direito do Trabalho estão tendo que navegar em águas nunca exploradas. A crise causada pela pandemia do coronavírus certamente surge como algo nunca visto, promovendo uma necessidade de se repensarem as relações sociais, ainda que temporariamente, e com muita urgência.
No decorrer do artigo, abordaram-se repercussões da pandemia nas relações de trabalho, em especial quanto à responsabilidade dos contratos de trabalho diante da impossibilidade da continuidade das atividades da empresa decorrentes da promulgação de decretos por autoridades governamentais, os quais determinaram o isolamento e o fechamento de comércios. Para tanto: a) analisou-se a legislação trabalhista vigente na CLT, em especial art. 501 e seguintes, referentes ao tema força maior, e art. 486 da CLT, referente ao tema factumprincipis; b) realizaram-se considerações acerca do Direito Administrativo que dialogam diretamente com o contexto legislativo vigente; c) teceu-se uma visão quanto aos princípios da fraternidade e da solidariedade e; por fim, d) discriminaram-se as medidas governamentais tomadas na época de pandemia (MP e Decretos), em especial a MP 927/20 e 936/20 (convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020).
Em análise aos arts. 501 e seguintes da CLT, entende-se que a pandemia causada pelo coronavírus, com a consequente determinação de isolamento/quarentena e fechamento de vários estabelecimentos, encontra-se no tipo quadro de força maior, caso em que o empregador não concorreu, direta ou indiretamente, com está situação. Não sendo, portanto, caso de imprevidência do empregador, a legislação trabalhista lhe concede algumas vantagens para fins rescisórios, sendo a principal, em caso de contrato por prazo indeterminado do empregado, não tendo direito à estabilidade, a metade do que seria devido em caso de rescisão sem justa causa.
Entretanto, caso não ocorra a extinção da empresa, resta mantida a obrigatoriedade das verbas trabalhistas em face da cessão do contrato de emprego. Assim, em um segundo momento, analisou-se o tema da redução salarial, conforme previsto no art. 503 da CLT, que, momentaneamente, ficou resolvido com o texto da MP 936/20 (convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020), o qual trouxe, além da possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, a possibilidade de redução salarial com correspondente redução de jornada (no percentual de 25%, 50% e 70%). O que aconteceria por acordo individual entre empregado e empregador pelo prazo de 240 dias (esse prazo no Brasil está sendo prorrogado enquanto permanece o estado de calamidade, inicialmente era o limite de 90 dias, passou para 120, após 180 e atualmente é 240), com a finalidade de preservação dos empregos, inclusive prevendo a contrapartida de preservação dos empregos.
Além disso, analisou-se a aplicabilidade do teor do art. 486 da CLT, o qual traz a previsão de que, no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade governamental ou pela promulgação de lei que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável. Sobre tal artigo, abordaram-se entendimentos doutrinários divergentes e importantes reflexões, que possibilitaram concluir que a aplicabilidade do art. 486 só seria possível quando houvesse discricionariedade, e, portanto, quando fosse possível praticar a discricionariedade (juízo de conveniência e oportunidade) por parte do governo, o que não aparece ocorrer no momento. Nesta lógica, os decretos das autoridades públicas não demonstram a possibilidade de aplicação do art. 486 da CLT, ou seja, o dever de indenizar do Estado, pois a realidade é que o Estado, diante da orientação mundial de saúde, em razão do Covid-19, se viu obrigado a promulgar medidas de proteção à vida, que atingiram toda sociedade.
Ainda, abordou-se o compromisso social que o Estado tem de promover os direitos sociais, conforme prevê o art. 6º da CF, em especial, de preservação do emprego, a fim de proteger o país, a partir do princípio da solidariedade e fraternidade, para que não aprofunde em uma recessão econômica. Para tanto, analisaram-se as diversas leis e medidas provisórias trazidas pelo governo, destacando a MP 936/20 (convertida na Lei 14.020/20 em 6 de julho de 2020), que trouxe a possibilidade do empregador suspender o contrato e/ou reduzir jornada por acordo individual entre as partes. Em tal MP se observa que a solidariedade social foi imposta pelas medidas provisórias que auxiliam concreta e financeiramente empregados e empregadores. Assim, o ente maior (governo) assume a responsabilidade pelo bem dos entes menores (sociedade civil). No movimento da fraternidade, a parte que recebe o benefício do governo deve dar uma contrapartida (ficar em casa, trabalhar, qualificar-se, no caso do empregado; reorganizar a atividade produtiva com menos riscos para todos, não dispensar empregados, adotar teletrabalho, no caso do empregador). Portanto, a fraternidade impõe um movimento de autorresponsabilidade de cada um dos envolvidos para minimizar os reflexos negativos do desastre pandêmico.
Por fim, destaca-se que não há dúvidas que a pandemia e a consequente quarentena são situações atípicas e bastante novas, logo não é tão simples encontrar respostas exatas. O que ocorrerá é que caberá, mais uma vez, ao Judiciário decidir sobre a aplicabilidade ou não do art. 486 da CLT. Porém, acredita-se que as medidas provisórias publicadas pelo Governo com diversas alternativas para os empregadores, inclusive trazendo para si (Estado) a responsabilidade do pagamento de um benefício social de preservação dos empregados, serão avaliadas pelos magistrados. Parece que o Estado está cumprindo com o seu compromisso social, responsabilizando-se em parte pelos contratos de trabalho. Da mesma forma, caberá aos magistrados a análise da responsabilização do cumprimento integral dos direitos trabalhistas por parte dos empregadores como detentor do risco do negócio, assim como a análise da relativização ou não das relações trabalhistas diante do cenário econômico.